terça-feira, 2 de agosto de 2011

Arquivo Morto I

A carta abaixo retrata um de meus melhores momentos como "mestre" de RPG... Ela finalizou uma crônica jogada por um de meus grupos em Poços de Caldas, onde o autor da carta era um Vampiro amaldiçoado, destinado a enfrentar sua própria cria, algo muito comum entre os seres noturnos do jogo "Vampiro a Máscara". A verdade é que ele amava sua cria e seu destino shaekesperiano não poderia ser outro senão este. Esta partida foi épica, nunca esquecerei do momento em que ele selou seu destino, emoção à flor da pele, primeira vez que vi um jogador chorar ao ver seu personagem "morrer". 



Luton, 31 de Outubro de 1999.

                                      
      “Sint  ut sunt aut non sint?”                                                     

 
Estimado filho Kaul...


  É com lágrimas de sangue que me coloco a escrever; pois embora escreva com o mais sincero e profundo sentimento, sei que não poderá ler. Não agora, que de forma tão vil e traiçoeiro encerrei-lhe o ciclo da vida...
  Como pôde perceber, o nosso mundo é cada vez mais governado por jogos de interesses e por um individualismo cada vez mais aterrador, onde existe apenas uma lei a imperar, uma lei de sangue e morte, sempre a imaginar novos meios de destruição e corrupção… 


  Mas há outra lei; uma lei de paz e de amor, sempre a desenvolver novos meios de libertação desses  flagelos que tanto nos perseguem. Outrora, acreditei neste segundo caminho, mas é uma via árdua e delicada, tão difícil que acabei desistindo por julga-la impossível. Mas quando o abracei (juro-lhe) ainda acreditava neste caminho, embora o conflito em minha alma destruísse aos poucos minha humanidade já nestes primórdios.
  Tentei educa-lo por esse caminho, e a medida que você prosperava, eu a tinha cada vez mais distante, onde meus dedos roçavam o ar e nunca sentiam o doce toque de outrora.
  Acabei aceitando o monstro dentro de mim, e então a névoa reinou frente a tudo.
  Norman, que você acredita ser cria do “Senhor dos Corvos”, foi na verdade minha primeira cria, seu irmão mais velho… Lembro-me que quando o abracei ele me abandonou logo após despertar; odiou-me desde o primeiro momento de sua não vida e foi embora prometendo vingança.
 O fato de ter sido ele quem implorou veemente pela vida eterna, mesmo depois de ouvir sobre todos os males adjacentes a  nossa fatídica imortalidade não me importou, e jurei nunca mais cometer tal crime.
  Nunca soube porque quebrei esse juramento ao abraça-lo, _Talvez solidão, sabe o quanto é dolorosa e vazia a existência de um Nosferatu._, mas o mais provável; embora possa parecer paradoxal, é que acabei abraçando-o por Amor...
 Sinto apenas não ter percebido isso antes, pois se assim fosse, todo o sofrimento que tive, e que causei-lhe não teriam ocorrido. Mas infelizmente, sentia-me perturbado demais para isso, sentia-me como uma massa caótica de desejos conflitantes, de valores, de ideais e possibilidades, alguns conscientes, outros inconscientes, que me puxavam simultaneamente em várias direções, deixando-me sem saber qual caminho seguir.

  Norman então retornou, e com ele veio um sorriso amável, um digno perdão e a promessa de um poder imenso, por um fácil caminho no Sabá. Tentei resistir mas não consegui, Norman  facilmente me  levou para a escuridão, e então perdi finalmente a pouca humanidade que me restava...
Esta foi de fato, a época em que começaram suas horas infortúnias; quando comecei a  lhe tratar mal, batendo e humilhando com pouco remorso.
  No entanto; creio que ainda que infimamente, ardia em meu peito a chama da humanidade. Contrariei as ordens superiores e em vez de o matar, quis traze-lo para nosso lado. Você negou me traindo, fui castigado por isso e tive de forjar minha inocência acusando um Sabá de ter me capturado e tomado meu lugar. Você inocentemente acreditou...
 Em pouco tempo o Sabá já havia tomado o território que chamamos de “Londinium”, e conseqüentemente, era minha obrigação tomar a cidade que por direito me pertencia; Luton devia ser tomada e você exterminado.
  Pela segunda vez meu coração falou mais alto e tentei mais uma vez trazê-lo para o Sabá; alegrei-me quando aceitou vir para o nosso lado. Estava indo novamente contra ordens superiores, mas sabia que no máximo receberia um castigo, e que após passar pelo chamado “ritual de criação”, você seria aceito como um de nós.
  Infelizmente fui traído de novo... Minha vontade e obrigação era matá-lo; mas não podia... Adiei a tomada de Luton o mais que pude, mas  aquele  Tremere que você conheceu como Emerald Ramundsen, era nosso Cardeal  e não suportaria a situação por muito tempo, pois Luton era a única cidade a resistir dentro de Londinium. E então não pude mais adiar o inevitável...
    O sangue que suja esta folha é tão seu quanto meu; pois é o mesmo que nos uniu na sua criação e na nossa despedida num só. E foi nesse momento que eu percebi porque adiei tanto este dia; como poderia matar aquele que possui dentro de si o meu próprio sangue?
  Descobri  também que a Camarilla que você tanto acredita é tão podre quanto seu líder Burlamach, e que o Sabá é ainda mais fétido. Percebi que não fora você quem me traiu, mas apenas eu; que não suportei o fardo de um caminho correto mas difícil, e entreguei-me ao Sabá, renunciando a tudo que antes importava-me, sendo portanto, o único traidor entre nós.
 Admirei a coragem que teve, ao enfrentar praticamente só tanto poder. Era como se uma formiga lutasse com um Titã sem se intimidar ou entregar seus ideais por medo ou certeza de morte, pois o poder que Luton enfrentava não era só o de Londres ou da Inglaterra, mas de todo o Sabá. E mesmo tendo a sua frente tanta disparidade você resistiu bravamente. Seria muito mais fácil abandonar seus valores e entregar-se, aliando-se ao Sabá, ou fugindo; como todos os outros príncipes...
  Foi então que percebi o que aconteceria-lhe agora que estava nas mãos de Emerald e Peladán...
  E embora tenha todo o direito de não acreditar, foi por Amor que o matei; é melhor ter a mácula de seu sangue entre minhas mãos, que permitir  uma eternidade de sofrimentos nas mãos do Sabá, vendo-o  sofrer punições tão repugnantes que fariam Dante reescrever toda a Divina Comédia colocando Emerald e Peladán na boca de Lúcifer.
  E é por isso que lhe digo que o traí antes, mas você reacendeu em mim a digna humanidade, e é só por Amor a você que fui obrigado a fazer o que fiz. Você Kaul Foglio, não só morreu sem sentir dor, como foi o único vencedor de toda esta “Trágica Comédia”.
   Rogo-lhe por paz e por seu perdão.
    “Beati quorum tecta sunt peccata...”
 Engels.

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