quarta-feira, 10 de março de 2010

O ARTISTA E AS "TENDÊNCIAS HEGEMÔNICAS"

Antonio Henrique Amaral,
São Paulo, 23 de agosto de 1995

Sabe-se que há certa perplexidade quanto a curadoria da atual Bienal de Veneza que estaria na "contramão das tendências hegemônicas da historiografia" abordando radicalmente a arte figurativa. Eu gostaria de refletir sobre o seguinte: a arte deste século, como a de qualquer outro século, reflete sempre as transformações que se operam no homem e nas culturas em que vive o artista. Essas transformações ocorrem em dois tempos distintos: no tempo interior do homem e no tempo do mundo a sua volta que parece mais veloz e vertiginoso por causa das mudanças tecnológicas.

Internet, computadores, a informação global nos fazem crer que a nossa vida vai a mil por hora. Cria-se a ilusão do conhecimento imediato e "parece" que a informação é experiência assimilada por mágica eletrônica. No entanto o acesso à informação não deve ser confundido com o conhecimento que é fruto da experiência assimilada, processada lentamente por nossos mecanismos interiores.

Consciente ou não, o artista se defronta com o desafio de lidar com esses dois tempos e através deles criar seu trabalho, desenvolver sua linguagem refletindo seu estar no mundo. Convergir essa dupla visão objetiva-subjetiva (a obra de Kafka). Nesse percurso não existe "mão" nem "contramão". O desenvolvimento do ser humano e de suas linguagens artísticas não são e nunca foram lineares e aqui é que as "vanguardas" iludem. As direções são múltiplas e não existe isso de estar na frente ou atrás.

Baudelaire dizia que a obra de arte é fruto de dois elementos básicos: um elemento constante, que transcende a contingência temporal, feito de antigas inquietações diante dos mistérios de nossa existência e um segundo elemento, circunstancial, que é a Época, a Moda a Moral e a Paixão. As obras de arte buscam a integração desta nossa quase esquizofrênica condição humana.

Não acredito em "hegemonias" e muito menos que se possam "recolocar as coisas no lugar" porque as "coisas" e o artista estão sempre mudando de lugar. Como diz Anthony Storr, "o único dogma aceitável é o de que todos os dogmas são suspeitos".

Princípios estéticos, dogmas religiosos ou políticos sempre desaguam em atitudes sectárias e trágicos componentes autoritários: pretensiosas afirmações de que isto é vanguarda e aquilo é passado, de que é por aqui e não por ali, todas essas "verdades" se desmancham como incertas e frágeis. Somos testemunhas neste século de como são passageiras as verdades éticas, estéticas e políticas que se proclamam lógicas e irrefutáveis.

No mundo das artes os sistemas conceituais de vanguarda são sistematicamente desmontados pelo imprevisível, contraditório e complexo comportamento humano. As vanguardas pós-modernistas estão sempre decretando a morte da pintura que é o cadáver que mais vive e se mexe que conheço. Os dois tempos conflitantes se encontram, desencontram e a pintura continua.

Sobre a discutível "supremacia da arte minimalista e abstrata" e uma possível volta da figura não acredito que a pintura figurativa está voltando porque nunca me ocorreu que ela tivesse ido embora e só agora estivesse voltando... Como nunca engoli "supremacias" de quaisquer tendências. O minimalismo e o abstracionismo são correntes da maior importância mas no meu entender, nunca foram "supremas" porque nenhuma tendência o é. O pintor Francis Bacon detestava a arte abstrata que acusava de decorativa, inconseqüente e instrumento de mistificação, apenas para citar a opinião de um grande artista.

Respeito e amo a obra de muitos artistas abstratos mas se não acredito no "progresso" da arte como posso acreditar em "supremacias" e "hegemonias"? Não são elas que geram dogmáticas teorias excludentes, inquisições, fundamentalismos, intolerâncias e racismos? Minimalistas, abstratos e conceituais enriqueceram o acervo artístico da humanidade mas não excluem outras vertentes do trabalho artístico.

O absurdo, a fantasia, o desejo e o animal se misturam no homem de maneira muito mais complicada do que suspeitam intelectuais portadores do perigoso vírus do raciocínio lógico. A arte é feita sempre com as mãos, os corações e as mentes em poética intimidade. Os caminhos da arte são traçados pelos artistas e não por revistas especializadas ou Bienais. O mundo a nossa volta "parece" apenas que anda muito depressa mas lá dentro da gente o tempo é bem outro. Há muito mais confusão, mistério e alternativas do que nos fazem crer os sacerdotes do Pós-Modernismo e de outros ismos recentes...

Pensar que a arte figurativa refluiu nestas últimas décadas ou ficou pouco visível, eu faria um paralelo com certo panorama político: se eu morasse em Moscou nos anos 70 e me perguntassem - "Você acha que as liberdades democráticas refluiram nas últimas décadas ou apenas ficaram menos visíveis?" No Brasil, onde um arraigado provincianismo infesta uma certa elite intelectual ansiosa em estar ao dia com certas "tendências hegemônicas", aceitar sem discussão as "verdades" ditadas por instituições e artistas mais em evidência nas metrópoles-modelo, deixa a impressão de que há leis que dizem o que é certo ou errado.

De repente tudo tem que ser abstrato ou conceitual ou figurativo ou construtivo ou expressionista ou sabe-se lá o que determinou o teórico alemão ou americano ou italiano em voga no momento. Dá a impressão de que se instalam regimes culturais de "franchising" concedidas por Instituições ou críticos de renome internacional. A remuneração dessa "franchising" é a participação neste ou naquele evento, uma migalha no mercado X ou Y, um que outro artigo na revista B ou C. Para alguns a pintura figurativa está invisível, para outros nunca deixou de ser visível. Só vê quem tem os olhos abertos e cabeças sem pré-conceitos.

No Brasil, uma parcela da mídia e de certo público, acredita que a hegemonia abstrata e conceitual "domina" a cena artística local. Como pintor, gravador e desenhista não me preocupo em ser coerente pois se trabalho com a figura, às vezes, meu trabalho é francamente não objetivo. O pintor americano Barnett Newman dizia que ele estava para a estética assim como os pássaros estavam para a ornitologia...Assino embaixo e entendo que o desejo, a paixão, desordenam quaisquer princípios éticos e teorias estéticas.

Quanto à hegemonia abstrata e conceitual que pretensamente "domina" a cena artística brasileira é mais um jogo de cena do que verdade: jogos de grupos interessados em emular modelos em voga. Insegurança cultural? Acredito que o desafio do artista é criar no meio da confusão de informações e hegemonias dominantes. Nossa realidade é complexa e múltipla demais e precisa de toda a informação e experiência dos que refletem essa diversidade. Obstruir esse processo é equívoco histórico da maior gravidade.

Em face de tais grupos dominantes temos que ser sempre esteticamente incorretos e assumir de uma vez por todas as complexidades envolvidas e o risco de sermos diferentes. Criar nossos valores num processo sociocultural de individuação junguiana em todas as áreas de nossa vida social, cultural, econômica, política e artística. Trabalhar com mais poesia e independência intelectual, mais próximos da criação e menos envolvidos com os procedimentos burocráticos das "tendências hegemônicas da historiografia"

O desejo é a força criadora e excluí-lo da obra de arte é fatal para esta última. Em arte, conceitos racionais, intelectuais, têm vida curta. Artistas conceituais apaixonados como um Joseph Beuys deixam um inequívoco registro (sociológico? estético?) com a integridade de sua fé ou um esperto Andy Warhol com seu absoluto cinismo, marcam presença intensa em seus cenários culturais. A meu ver não são tendências universais e sim artistas únicos.

Neste final de milênio a invenção e a experimentação vão continuar porque os artistas sempre encontram as saídas dos becos. O homem pinta, esculpe e desenvolve linguagens há vários milênios (20.000, 40.000?) e continuará a fazer isso. Quem sabe as artes visuais estejam procurando um terreno mais firme, um diálogo mais simples com seu público, uma reaproximação poética mais densa com o homem, suas fantasias, sonhos e desejos. Com gestos mais possíveis que o ajudem nesta caminhada sabe-se lá para onde.

(Originalmente publicado em O ESTADO DE SÃO PAULO, página D6, 24 de setembro de 1995)

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