domingo, 22 de agosto de 2010

Uma analogia entre o filme O Quarto Poder e o documentário Muito Além do Cidadão Kane

O filme O Quarto Poder do diretor Costa Gravas nos remete a uma idéia bastante explorada pelo cinema, a influência da mídia sobre a opinião pública, evidenciando o que seria de fato o “quarto poder” a que o título se refere. Na verdade, filmes como A Montanha dos Sete Abutres de Billy Wilder, Mera Coincidência ou o clássico de Orson Welles, Cidadão Kane, já exploraram este assunto de forma melhor e mais aprofundada, já que durante grande parte de O Quarto poder, nossa atenção se volta ao lado humano do repórter e do seqüestrador, que invertem seus papéis e tornam-se não apenas parceiros, mas retratos ambivalentes, símbolos do arrependimento que comove e causa comoção, fazendo o telespectador “torcer” por suas vitórias.

Mas na verdade, o propósito deste texto não é fazer uma crítica cinematográfica do filme, tampouco abordar a psique destes personagens e sua evolução no desenrolar da trama. O que interessa de fato é a relação que há entre O Quarto Poder com o documentário Muito além do Cidadão Kane; documentário do diretor Simon Hartog produzido pela BBC de Londres há alguns anos, e que, não por mera coincidência teve o seu título inspirado no citado Cidadão Kane. O filme fala de um grande magnata, dono de um verdadeiro império das comunicações, o Sr Charlie Foster Kane. Homem inspirado em William Randolph Hearst o grande magnata da comunicação. Uma inspiração que custou caro ao cineasta Orson Welles. O documentário também fala de um grande e poderoso império, mais especificamente daquele de propriedade de Roberto Marinho; a Rede Globo, a mais influente rede de comunicações do Brasil e uma das maiores do mundo. Também não foi por mera coincidência que o documentário foi proibido no Brasil...

“A Globo na verdade tem a vocação governista, e o que ela não quer é que seus interesses sejam contrariados”.
Argemiro Ferreira (Muito Além do Cidadão Kane)

No filme O Quarto Poder vemos claramente a forma com que um único repórter consegue mudar a imagem de um homem que até então não poderia ser visto pela opinião pública como outra coisa além de um perigoso seqüestrador para uma celebridade, uma vítima das circunstâncias que merece nossa compaixão. A história é até certo ponto muito verossímil, e depois dele, parece ainda mais, se levarmos em consideração o poder que um Roberto Marinho possui “Ele é mais poderoso até que o Cidadão Kane” disse Chico Buarque em um trecho do documentário. Esta perigosa questão fica clara no filme, embora nele tenhamos de nos ater um pouco mais ao que não é explícito.

Em determinado momento o repórter Max alerta para o seqüestrador não fazer nada que possa alterar a boa imagem que conseguiram, pois a opinião pública é volátil. Portanto, concluímos que não importa a verdade; mas o que é mostrado como verdade. Tanto é assim que a o material bruto da reportagem produzida por ele e sua assistente para defender Sam foi recolhido e reutilizado pelo repórter rival para exatamente o contrário; denegrir a imagem de Sam . O material colhido era o mesmo, mudou-se apenas a intenção e consequentemente o enfoque dado. E assim, uma entrevista que mostrava uma mãe orgulhosa do bom e equilibrado filho e uma esposa caridosa grata pelo bom marido que tem se tornou facilmente, apenas pela edição, uma entrevista inquisitiva, cheia de raiva, mostrando um homem desequilibrado. Qual era a verdade portanto?
Como telespectadores, somos habilmente conduzidos pelo diretor, pela história comovente e pelo desenrolar dos fatos a apoiar o seqüestrador, humanizamos seu ato e acabamos torcendo por ele e pelo amigo repórter. Mas aqui também somos manipulados e talvez aqui resida o maior mérito metalinguístico do filme, ele critica a manipulação pela mídia, mas nos manipula brilhantemente. Ou alguém que esteja livre da influência da comoção dos protagonistas torce para um seqüestrador armado e com crianças presas consigo? Claro que como telespectadores somos quase “oniscientes” e vemos o que nem o público (do filme) nem os personagens vêem, mas um seqüestrador armado não deveria ser julgado pelas suas razões, mas pelos seus atos e manipulados tanto pelo carisma dos atores e personagens quanto pelo roteiro, o vemos como desejam que o vejamos. Desta forma, a resposta para a pergunta que encerra o parágrafo anterior é apenas uma, nenhuma das duas edições retrata a verdade, ambas sofreram interferências com o propósito de manipular os telespectadores e mostrar apenas um lado da realidade, o que lhe interessava, sem ética, escrúpulos ou compromisso com a verdade.

Neste ponto devemos voltar nossa atenção para Muito além do Cidadão Kane. O documentário cita o poder da Globo e constata que a grande maioria da população brasileira só assiste à Globo como fonte de informação. Isso é muito perigoso se levarmos em consideração o fato de que não temos resposta para a mesma pergunta feita para o filme, qual verdade ela aborda? Ou, a verdade de quem? De acordo com o documentário não é por acaso que a Globo sempre esteve ao lado do poder. Na ditadura, mostrou apenas a verdade dos militares; anos depois, para eleger Collor atuou como o repórter do filme, editou o material e mostrou algo que não retratava a verdade, fazendo Collor se sobressair perante Lula e crescer no Ibope. Uma coisa leva à outra e como foi dito no filme, a opinião pública é volátil, enaltecido pela “vitória” Collor cresceu nas pesquisas, ganhou o voto da massa e foi eleito... Com uma “simples” edição a rede elegeu o presidente do Brasil e fez como Max e Sam, tentou mostrar uma imagem positiva para o público. “Na sociedade do espetáculo, a política é fundada na aparência, na imagem que "passa bem" na televisão, no rosto que "fotografa" bem. O essencial é comunicar, o importante é convencer” (Belloni). No filme, o homem desnorteado, vítima das circunstâncias, no Brasil, o jovem e vigoroso caçador de marajás no mais perfeito exemplo de como “Televisão domina a nação” (Daft Punk).

“Democracia pressupõe a liberdade de comunicação, a liberdade de expressão. E não haverá liberdade de expressão se os meios de comunicação não forem democratizados. Se você tem um instrumento de comunicação que por dia fala com 70 milhões de pessoas, e o controle destas mensagens é feita apenas por uma equipe, coordenada ideologicamente por um senhor, eu penso que aí está descaracterizada qualquer possibilidade de democracia”.
Luís Inácio Lula da Silva (Muito Além do Cidadão Kane)

À época do documentário, Roberto Marinho ainda estava vivo e a Rede Globo possuía uma influência muito maior que a de hoje, quando a Record, seguindo o próprio critério estabelecido como padrão Globo de qualidade começou a ameaçar a rival. Ainda assim a Globo ainda é a maior e mais influente, quase

“como um sinônimo ela própria da palavra televisão (...) uma voz autorizada, a única confiável, indiscutível, uma espécie de discurso competente que nos ensina a direção, aponta-nos a saída, mostra-nos a entrada e nos dá a resposta daquilo que muitas vezes acreditamos com convicção serem escolhas, gostos, idéias e pensamentos absolutamente pessoais, produto da nossa originalidade enquanto indivíduos" (Pellegrini citado por Porto 1993)

É aqui onde as lentes convergem, pois Muito além do Cidadão Kane é um documentário que fala do tema central do filme O Quarto Poder; uma influência tão grande que é capaz de modificar a opinião de uma parcela imensa da população com uma simples deturpação de pesquisa; ditar modas, impor costumes, criar mitos da noite para o dia, vender a imagem que lhe convém, apoiar e derrubar presidentes; um poder que no Brasil é brilhantemente representado pelo Plim-Plim da Globo quanto de toda a mídia, e que poderíamos chamar de “o quarto poder” do país. “Apud Rosebud”...

Referências:

WELLES, Orson. Cidadão Kane (1941)
GRAVAS, Costa. O Quarto Poder (1997)
HARTOG, Simon. Muito Além do Cidadão Kane (1993)
PORTO, Tânia Maria Esperon. A Televisão na Escola... Afinal que pedagogia é esta? - Capítulo 3: A Mídia Televisica, O Adolescente e A Escola Pública
BELLONI, Maria Luiza. O que é mídia-educação. Capítulo 3: Mídia-Educação / Ética e Estética

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